Tratando a cólera em Moçambique

Leia o texto em que a médica Rachel Baccarini fala sobre seu primeiro trabalho com MSF e a experiência de se preparar para uma evacuação

Tratando a cólera em Moçambique

A cólera voltou com força. Nas últimas semanas, os casos entrando no Centro de Tratamento de Cólera (CTC) de Chipene foram poucos e esparsos. Mas naquele dia recebemos a notícia de que vários casos estavam aparecendo em Lurio, norte da província de Nampula, em Moçambique, a uma hora e meia da nossa base em Chipene. Seis mortes foram reportadas na comunidade.

Depois das últimas notícias, nossa equipe retomou as atividades com toda energia. Eu e a coordenadora fomos para uma pesquisa exploratória, conversamos com a comunidade e iniciamos o treinamento dos dois técnicos do centro de saúde. Logo em seguida começou a instalação do CTC em Lurio. Foi montada uma grande tenda com dez camas para pacientes com cólera, pulverização, soros e todo o necessário para iniciar o atendimento.

No dia seguinte chegamos a Lurio e encontramos o CTC lotado e o ambiente bastante agitado. Crianças com cólera e malária acompanhadas pelos pais, uma mulher grávida já com contrações e prestes a dar à luz, um rapaz com sinais clínicos de meningite. Treze pacientes no total e mais os acompanhantes que entravam e saiam sem parar do CTC. Nesse dia de trabalho tentamos organizar um pouco o ambiente e estabilizar os pacientes. Os dois técnicos, já cansados e sem dormir direito, faziam o seu melhor. Algumas crianças também com malária, além da cólera. Voltamos para a base cansados e preocupados com a situação em Lurio.

Assim que chegamos em Chipene soubemos que havia ocorrido um óbito, uma menina de 13 anos. Ficamos desolados. E mais ainda quando durante a noite fomos informados que um bebê de 18 meses, portador de malária, também foi a óbito. Foi uma noite difícil e triste para a equipe. Acordamos no dia seguinte prontos para partir de volta a Lurio quando um dos motoristas nos veio informar que distúrbios estavam acontecendo em Pavala, caminho de Lurio. O CTC estava vazio. Num país onde nas áreas rurais a presença de forasteiros é vista com suspeita, a cólera estava sendo relacionada a isso.

A partir daí a coordenadora do projeto, iniciou uma série de telefonemas e o protocolo de emergência de Médicos sem Fronteiras foi acionado. Chipene, o local onde estávamos, permanecia tranquilo, mas tudo era imprevisível naquele momento. Ela começou a explicar os procedimentos em seguida: – Hoje ficamos na base, ninguém vai em direção a Lurio. Arrumem uma “bolsa de evacuação” pequena e só com o mais importante, passaporte, dinheiro, e estejam prontos para uma evacuação a qualquer momento.

Estranha a sensação de partir às pressas, só levando o essencial e deixando malas para trás. Eu me senti dentro de um filme, não totalmente assustada, mas não totalmente tranquila. Entre os colegas da equipe o sentimento variava da prontidão ao medo. Arrumamos nossa mochila para evacuação e esperamos. Durante a noite dormimos ainda meio em estado de alerta. Nos dias seguintes novos rumores de agitação a caminho de Lurio nos impediram de ir até lá, principalmente pelo receio de bloquearem a estrada. Não havia rotas alternativas. Só nos restou a tarefa de fazer os contatos com os administradores dos municípios para que enviassem técnicos locais para Lurio, além dos soros e medicamentos, o que permitiria a continuidade do atendimento. 

Estamos hoje no quarto dia de espera, ainda sem poder ir a Lurio. Outros pacientes já deram entrada no CTC, o que significa que pelo menos o atendimento continua. Se alguns morreram nas comunidades, não ficamos sabendo. Nossa equipe continua trabalhando em outras regiões, reparando poços de água, fazendo palestras sobre prevenção, reunindo com ativistas, distribuindo panfletos e o produto com cloro usado para limpar a água. Nosso suporte a Lurio se resumiu então a apoio com material e transporte até o fim do projeto em poucas semanas.
 

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