Serra Leoa: o caminho de mãos dadas com as crianças

A abertura de um centro pediátrico no contexto pós-Ebola

Serra Leoa: o caminho de mãos dadas com as crianças

O dia amanhecendo, saímos da base e na rua escutamos "tubabu!" e vem correndo lá de longe cinco ou seis pequenos. Descalços, todos sujos de terra, nariz escorrendo, fungos na cabeça, orelha purulenta – dois barrigudinhos que já tratamos de vermes várias vezes, mas insistem em reinfectar – uns pelados, outros com uma camiseta-vestido de algum time de futebol (vi uma do Brasil) que passou por gerações. Recebemos um abraço apertado e sorridente antes da discussão e empurra-empurra diário das crianças para ver quem dá a mão a quem, até que nos transformamos em polvos e vamos todos juntos de mãos dadas até o centro de saúde. Somos três expatriadas do time médico: eu, a obstetriz e a enfermeira. Seguimos com as crianças conversando em linguagem de sinais (aprendi poucas palavras em kuranko, língua local). Na entrada do centro de saúde, alguns já foram incluídos na lista de pacientes; com outros precisamos de criatividade para convencê-los que ali dentro só pode ficar quem está doente. E finalmente eles voltam para casa, rindo, numa felicidade inocente de quem não tinha idade suficiente para entender o quanto sofreu essa população no tempo do Ebola.

Serra Leoa está livre do Ebola desde novembro de 2015. Dentre os que morreram, estavam muitos trabalhadores da área da saúde. MSF esteve aqui na luta contra a doença e agora o trabalho é ajudar na recuperação da saúde. Estamos na vila Bendugu, na chefatura¹ de Mongo, no distrito de Koinadugu, nordeste de Serra Leoa. A área é formada por diversos vilarejos em meio à floresta. Aqui tem um centro de saúde considerado a referência e em algumas outras vilas há pequenas unidades de saúde, bastante básicas. Começamos por esse centro e a intenção é nos aproximarmos cada vez mais desses vilarejos, para que os pacientes cheguem a tempo de um cuidado adequado. (Para algumas vilas, quando recebemos um chamado de emergência, é hora de dormir, tomar banho, comer, descansar e finalmente se preparar para receber a ambulância que vai chegar com o paciente depois de seis horas. Para compreenderem a dificuldade de acesso aos locais: depois da chegada aqui, se for um caso que não é possível manejar com o que temos – casos cirúrgicos, por exemplo – são mais 6 horas até o hospital mais próximo. Isso, na época da seca, porque na época das chuvas pode chegar a 9-10 horas pelas condições enlameadas de uma péssima estrada).

Nós abrimos o projeto. Nossa equipe médica chegou no início de março. Os primeiros dias foram para começar o contato com a equipe de saúde local: um oficial de saúde da comunidade, que faz o papel de médico; uma obstetriz; uma assistente de parto; uma enfermeira; e outras pessoas sem cargos fixos que ajudavam de alguma maneira a conduzir o centro. Foi trabalhoso conseguir a confiança dessas pessoas para funcionarmos como um time. Precisamos conhecer e compreender os termos culturais para nos incluirmos e sermos entendidos também como cuidadores, e também para diminuir o medo dos que imaginavam que estávamos aqui porque o Ebola tinha voltado. Nas primeiras semanas, trabalho braçal: descartar inúmeros remédios expirados, retirar instrumentos quebrados, recuperar móveis, retirar entulho, objetos comidos por ratos, reorganizar as salas, planejar uma sala de emergência, duas enfermarias, montar macas, armários, construir uma farmácia, trazer os medicamentos… Enfim, renovamos o centro todinho. Foi muito bonito ver a alegria e o entusiasmo de todos trabalhando juntos, os cidadãos de Mongo e a equipe do MSF. Veio da capital (Freetown) grande parte do profissionais nacionais – aqui na vila são raros os que estudaram. Para os que são da cidade grande também foi desafiador, um lugar completamente diferente no próprio país, no meio do mato, sem estrutura nenhuma, alguns nem sabiam onde no mapa fica Bendugu. Por aqui, o tempo passa diferente. Não tem energia nas casas. De manhã, se vê a fila de baldes para coletar água nos poucos poços espalhados pela vila. Todos se conhecem. Pelas relações familiares poligâmicas e endogâmicas, são quase todos parentes. À tardinha, sempre tem música em alguma casa e as crianças rodeiam para dançar como se não houvesse o amanhã. Aqui a felicidade insiste em existir, mesmo sendo um tanto improvável, quase incompreensível. Aprende-se tanto com eles.

"Small small" (devagar, em krio) crescemos, a equipe nacional evoluiu no conhecimento e na desenvoltura no trabalho. Uma das vantagens de termos inaugurado o projeto é que tivemos algum tempo até aumentar muito o número de pacientes e pudemos insistir no aprendizado. Não queremos ser necessários. Um dia, MSF se vai, mas eles ficam, o conhecimento fica. Queremos que eles sejam independentes, com o melhor que se pode oferecer aos pacientes nesse contexto. As chuvas chegaram e os mosquitos que transmitem a Malária também. A Malária é a principal causa de consultas, internações e morte na população pediátrica. Algumas vezes é tão severa que o tempo é curto para salvar uma criança.

Falta um mês para acabar minha primeira missão. Sou médica desde o início de 2011 e fiz residência em dermatologia. Embora tenha sido um enorme desafio vir trabalhar com pediatria e com doenças que pareciam ser só de livros da faculdade, acredito que cada um faz o papel que pode para contribuir. Confio muito no trabalho do MSF e realmente a organização chega onde ninguém mais chega.

Nós que estamos aqui no projeto tivemos a sorte de ver acontecer do zero, trabalhamos muito para colocar tudo em andamento. Ver que deu certo e que continua crescendo é uma satisfação imensurável. Mas só podemos estar aqui porque vocês estão aí, lendo esse diário e permitindo que cuidados de saúde com dignidade cheguem cada vez mais a populações de extrema carência em tantos aspectos. As pessoas daqui (pacientes e profissionais) estão muito agradecidas. As palavras, os sorrisos, o carinho, os abraços, os amigos, os fatos inusitados, as imagens comoventes, somos nós que recebemos, mas eu gostaria de transmiti-los a todos vocês que fazem essa organização existir: "e-unwali-yo" – obrigada.

[1] Chefatura, do inglês “chiefdom”, é uma divisão político-territorial comandada por um chefe definido por laços de parentesco.

 

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