Salaam aleikum!

No meu último diário de bordo, falei sobre cuidados de recém-nascidos. Neste novo diário, vou focar em outro grupo que historicamente vulnerável em todas as sociedades: as mulheres.

Aqui no hospital, a maioria dos bebês recém-nascidos que vejo têm entre 1,5kg e 2,5kg (acho que, no Brasil, a maioria estaria entre os 2,5kg e 3,5kg). Posso ter uma amostra viciada por se tratarem dos bebês que estão hospitalizados, mas o que ouço do pediatra que acompanho diariamente é que esta é uma situação normal no momento no Iêmen. São prematuros? A mãe teve complicações na gravidez? Não, a causa mais provável é desnutrição materna – muitas vezes já mãe de muitos filhos, sem acesso a pré-natal, num país em crise por conta da guerra, elas não conseguem preparar o seu corpo para gestar uma criança sadia. O desafio continua depois do nascimento: é evidente a dificuldade de estimular essas mães a praticarem aleitamento materno exclusivo.

Cito também o caso da Fatema, uma paciente de 35 anos que tem diabetes dependente de insulina para tratamento e insuficiência cardíaca por conta de um infarto há cinco anos. Ela estava internada no hospital no dia em que cheguei, por conta de descompensações dessas doenças. Me lembro de o médico anterior dar alta para ela, pois sua situação estava estável e o que ela precisava era de um acompanhamento ambulatorial. No momento da alta, senti o drama dela e da sua acompanhante em conseguir esse acompanhamento, pois são pobres e o sistema de saúde do país está colapsado.

Uma semana depois, me chamaram no pronto socorro para avaliar um caso de trauma. Ao chegar na sala de emergência, vi que também tinha chegado outro caso de insuficiência respiratória. A paciente sentada e com o corpo curvado para frente, puxando o ar com dificuldade, pálida, suada, me chamou mais atenção e fui diretamente a ela. Conversei rapidamente, examinei, adicionei algumas coisas à prescrição feita inicialmente; tudo isso sem perceber que era a Fatema. Não sei se foi a situação em que ela se encontrava, ou a burqa, ou o fato de no primeiro dia eu ainda estar meio perdido, mas só fui reconhecê-la no dia seguinte na enfermaria.

Ela foi internada por conta de pneumonia e descompensação de diabetes e insuficiência cardíaca. Em 24 horas já estava estável, sem necessidade de oxigênio, e comecei a sondar as condições de vida dela para programar a alta. Descobri que a Fatema estava sempre acompanhada de sua irmã. As duas são deslocadas internas, do norte do país, onde a guerra é mais intensa. Elas não têm mais pai, irmãos ou nenhum homem na família para ajudá-las. Fatema era casada e seu marido foi assassinado em uma briga (situação muito comum por aqui).

Eu expliquei que, para que ela não fosse internada novamente (já era a quarta internação em dois meses), ela precisava tratar suas doenças crônicas. Sem insulina, seu diabetes não seria controlado. Elas me explicaram: "não conseguimos marcar consulta com nenhum médico sem pagar. Não temos dinheiro para comprar insulina. A cidade toda não tem energia elétrica há dois anos, não temos onde guardar a insulina. Não temos como comprar os antibióticos para terminar o tratamento da pneumonia. O que a gente faz?".

Praticar a empatia é algo que tenho aprendido na vida, mais ainda fazendo trabalho humanitário. Porém, sinto que em algumas situações é impossível realmente se colocar na posição das pessoas. Não tenho um pingo de noção do que se passa na vida da Fatema: do que é ser doente aos 35 anos de idade; não ter estrutura financeira, familiar e social para poder encarar essa doença; encontrar um refúgio em um hospital como o nosso, mas depois de alguns dias ter que voltar para o lugar onde mora pensando "será que volto viva da próxima vez?". Mas, só de pensar um pouquinho nessas coisas, ganho mais motivação para continuar o trabalho que fazemos aqui.

Para ver o diário de bordo de Tiago Valim sobre cuidados de recém-nascidos, clique aqui.

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