A saga do “pé frio” nos plantões

Niangara, 31 de março de 2013

É estranho pensar que já é Páscoa. Apesar de a República Democrática do Congo ser um país de maioria católica, herança da colonização belga, e eu morar ao lado de uma Igreja católica, já estou tão envolvida no trabalho que perdi a noção do tempo.

O tual chefe médico ainda está aqui e estou tendo intensivos de reuniões para tentar aprender o máximo possível sobre o trabalho. O interessante neste projeto é que, como chefe médica, eu não fico só atrás de um computador, eu também faço consultas nas enfermarias e divido os plantões com os médicos congoleses.

É bom porque não perco a prática, mas, por outro lado, acumulo funções e fico mais cansada. Na prática, é como no Sudão do Sul, quando estava substituindo o meu chefe, fazendo dois trabalhos ao mesmo tempo.

O hospital tem em torno de 80 leitos entre todos os serviços, ainda não está superlotado, entretanto, desde minha chegada, vejo o número de pacientes aumentar. Estamos entrando na estação chuvosa e, com ela, chegam a malária e as pneumonias. Outra doença que é alarmantemente alta é a infecção por HIV. Na enfermaria de Medicina Interna, 80% são soropositivos.

Desses, a metade está em tratamento à base de antirretrovirais e a outra metade descobriu ser positiva durante a internação.
Até agora, tenho passado muito mais tempo na enfermaria de adultos do que na pediatria, porque, em geral, esses pacientes são mais graves e com mais complicações. Na pediatria, por enquanto, é malária e pneumonia, com um ou outro caso mais grave, e a enfermaria de desnutridos por aqui é bem tranquila, se comparada com as minhas experiências anteriores; desde que cheguei tivemos, no máximo, sete pacientes internados.

Fico de plantão duas noites por semana, e, desde a época da faculdade, sou conhecida pelo meu “pé frio” no plantão.
Na sexta à noite, estava de plantão e tivemos um paciente com câncer de fígado que passou a noite inteira instável e faleceu às 6 da manhã – estive no hospital para vê-lo de hora em hora. Um bebê estava evoluindo bem até que sua mãe resolveu dar-lhe o remédio que havia comprado no mercado; ele teve intoxicação e faleceu. E eu ainda tive que fazer um parto de um bebê prematuro que já devia estar morto há pelo menos 24 horas, porque seu estado era chocante. Ontem tive que cobrir o médico nacional, que foi fazer um curso do Ministério da Saúde, e, claro, com o pronto socorro lotado!

Terminei às 17 horas, quando o outro médico nacional veio para me substituir, e fui direto para o escritório para ler e-mails e trabalhar no pedido de medicamentos. A política de MSF é a de abastecer os projetos duas vezes por ano. Mandamos o pedido de medicamentos para seis meses para Bruxelas e eles mandam os medicamentos por navio, que é mais barato que avião. Normalmente, já é difícil estimar uma consumação de medicamentos de um hospital para seis meses; mais difícil ainda é fazê-lo levando-se em conta que MSF está deixando Niangara e queremos deixar o hospital com um estoque de, no mínimo, três meses de suprimento após a nossa saída, para garantir a realização de tratamentos de rotina e dois anos de para os antirretrovirais. Então, haja tempo e atenção para organizar tudo direitinho!

Tudo tem seu lado bom: apesar de supercansada, preparamos pizza para o jantar – é ótimo ter italianas no grupo” –  e, melhor ainda, num forno à lenha. Posso estar exagerando, mas acho que foi a pizza mais deliciosa que já comi.
Hoje, quando acordei, tinha um pacotinho com miniovos de Páscoa na porta do meu quarto, presente da obstetriz italiana que voltou de férias há duas semanas e trouxe chocolate com ela. Apesar de supersimples, foi como se eu tivesse recebido um ovo de 1 Kg. Como a igreja é aqui do lado, entrei na onda das italianas e fui à missa de Páscoa com elas. Fiquei impressionada de ver como a missa é animada.

Eles têm um coral muito bem organizado e cantam o tempo todo. Meninos e meninas vestidos de branco ficam no altar e eles dançam todas as músicas com passos sempre sincronizados e diferentes para cada música. Queria muito ter filmado ou fotografado, mas não ousei, porque todos já estavam olhando para nós – não estão acostumados a ver “brancos” na igreja.
À tarde, fizemos um bolo e eu fiz brigadeiro – trouxe leite condensado e chocolate em pó do Brasil -, para cobrir o bolo. Sucesso total, todo mundo amou!

Apesar de simples, posso dizer que tivemos uma boa Páscoa em equipe, com direito a ovinhos de chocolate e brigadeiro!

Amanhã, começamos uma nova semana e um novo mês e, novamente, o tempo está voando.

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