Flores na água escura: se recuperando do ciclone Idai

Ana Nery, coordenadora médica de MSF, reflete sobre as histórias daqueles que sobreviveram ao ciclone Idai e sobre as memórias daqueles que perdemos

Maria Pedro, que sobreviveu ao ciclone Idai, em pé ao lado do que restou de sua casa

Nada simboliza mais a destruição causada pelo ciclone Idai em Moçambique do que as árvores. Caídas, quebradas, sem folhas, elas são testemunhos vivos dos rápidos ventos e água que fizeram com que até mesmo plantas poderosas de séculos de idade caíssem no chão sem vida.

Durante a inundação, as árvores também foram botes salva-vidas inesperados.

As pessoas nas áreas rurais e urbanas se refugiaram nos galhos à medida que a água subia para além de seus telhados, esperando por um resgate que às vezes nunca chegava.

Depois de nadar desesperadamente em rios recém-formados, onde antes havia casas e fazendas, as pessoas me disseram com decepção que a sobrevivência não estava ligada à bondade ou coragem de alguém, mas sim à aleatoriedade cruel de qual galho de árvore que as pessoas conseguiam agarrar.
 

Uma vida enterrada pela chuva

Olhando além das árvores, detalhes menores contam outras histórias.

A lagoa estagnada e inundada perto de Lamego é testemunha das mães que costumavam repreender seus filhos por não irem à escola para nadar no rio. As mães que, no final, se afogaram, enquanto seus filhos e filhas – que viraram excelentes nadadores pela prática – conseguiram obter segurança, mas eram pequenos demais para salvar seus pais.

No mar de lama que algumas das áreas rurais se tornaram, estou confusa com o número de pessoas andando em círculos olhando para o chão. Alguém se agacha para pegar algo essencial, que é invisível aos meus olhos: mãos cansadas desenterram retratos de família, uma camiseta, o espelho favorito de alguém. Memórias de uma vida enterrada pela chuva.
 

Dignidade solene

Dirigindo na estrada para o centro de saúde de Nhampoca, sou parada por dois homens idosos:

“A médica pode vir e ver algo com a gente?”

Eu tiro meus suprimentos médicos da minha mochila, pronta para ver um paciente, mas quando chego ao leito do rio fico surpresa com a solenidade de um grupo de homens reunidos em torno de alguém, ou algo, bloqueando minha visão.

Enquanto gentilmente os empurro para o lado, vejo na lama detalhes individuais que contam a história: o vestido outrora colorido de uma mulher, agora acastanhado e sem brilho; suas mãos flácidas descoloridas pela água do pântano.

“Cheguei tarde demais. Nós chegamos tarde demais. Sinto muito, eu não posso ajudar”, eu deixo escapar.

Eles acenam em silêncio. Eles só queriam que ela tivesse a dignidade de ser vista. Eu digo que vou contar às pessoas sobre isso, mesmo que eu não saiba o que quero dizer com isso. Eu direi aos outros.
 

Vulnerável à malária

As pessoas fazem fila para serem atendidas na clínica móvel de MSF no pequeno vilarejo rural de Nhatiquiriqui.

À medida que o agente comunitário de saúde leva os pacientes à nossa pequena área médica – nos sentamos em sacos de arroz vazios, pois ninguém mais tem cadeiras –, pacientes após pacientes são diagnosticados com malária. Mais da metade deles são crianças com menos de cinco anos.

As enchentes destruíram casas, mas também levaram os pertences das pessoas – mosquiteiros e roupas –, tornando-os ainda mais vulneráveis aos mosquitos que agora se reproduzem livremente nos lagos de água de inundação recém-formados.

Uma garota, parecendo muito mais velha que seus nove anos, está sentada ao meu lado com seus dois irmãos mais novos. Todos estão com malária, então pergunto pela mãe dela para que possa lhe explicar o tratamento e as medidas preventivas.

O agente comunitário de saúde toca meu braço suavemente e diz que não existe mais uma mãe.

“Existem mais casos assim”, diz ele.

O vilarejo levará tempo para se recuperar.
 

Salvação

A fase de emergência pode ter terminado, à medida que a água começa a recuar. Mas as árvores continuam contando histórias.

“Foi aí que eu me segurei por quatro dias”, diz um idoso em Nhampoca.

“Esta árvore salvou a vida da minha família.”

Para Chipendo, um enfermeiro do centro de saúde local, a salvação não veio de uma operação de helicóptero, mas da coragem de pescadores locais que usaram um tronco de árvore como uma canoa improvisada e vieram em seu socorro, arriscando suas próprias vidas nas fortes correntes. Ele passou dois dias sem comida, se segurando em um galho.

Ele pediu para não ser levado para casa, mas diretamente ao centro de saúde – havia trabalho a ser feito e pacientes para serem atendidos.

 

Na água escura

No final, foi a terra e seu povo que sofreu, perdeu, consolou e reconstruiu.

Conforme as plantações começam a brotar timidamente do solo em Nhampoca, penso em todas as histórias de coragem, força, resiliência e abnegação que ouvi daqueles que sobreviveram ao ciclone. Mas também na memória daqueles que perdemos enquanto lutavam por suas vidas.

Neste momento vulnerável e frágil de recuperação, à medida que os moçambicanos começam a recuperar suas vidas, famílias, casas, ando por uma estrada de terra voltando do centro de saúde e dou uma última olhada à água estagnada das cheias.

Grandes plantas aquáticas estão começando a crescer. E, pela primeira vez através da água escura, vejo flores.

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