De volta ao Brasil, pensando em Gogrial

Jundiaí, 13 de janeiro de 2013

Já faz quase dois meses que deixei o Sudão do Sul. O país é conhecido como um dos lugares do mundo mais difíceis para se trabalhar. Em MSF, a gente brinca que quem passar por isso pode colocar no currículo: eu sobrevivi ao Sudão do Sul!

A maioria dos meus amigos e familiares me disseram que, quando eu estava no Níger, escrevia muito mais sobre meus pacientes e sobre o hospital do que em Gogrial. Claro que em Gogrial eu trabalhava muito mais do que em Guidam, e não tinha muito tempo livre para escrever, mas não acho que eles estejam errados. Acho que, nesse lugar tão difícil, não falar dos pacientes foi também uma forma de proteção; acho que nunca vou me acostumar a ver pacientes morrerem. Nesses momentos fica evidente nossa pequenez diante da vida. Por isso mesmo acho que evitei falar dos pacientes que perdi. Foi muito mais fácil focar na minha maravilhosa equipe e em tudo o que fazíamos para tornar menos árida nossa vida em Gogrial.

Agora, há quase um mês em casa, talvez seja o momento de refletir sobre meus pacientes para poder pôr um ponto final em Gogrial, de onde sinto que ainda não voltei completamente. Ainda troco e-mails com os clínicos que eu supervisionava e com a médica que ficou no meu lugar e eles vão me atualizando de tudo o que está acontecendo por lá. Ainda sonho muito com Gogrial e com minha equipe, tanto estrangeiros como a equipe nacional. Talvez seja hora de refletir sobre minhas perdas e ganhos no hospital e deixar Gogrial como uma boa lembrança para poder me preparar para o próximo projeto.

É irônico lembrar que, no meu último dia em Guidam, no Níger, quando o avião não veio me buscar e eu tive que voltar para a casa, no meio do caminho, tivemos que trazer uma criança com malária que morreu antes de chegar ao hospital. Aquilo me obrigou a lidar com a morte até nas minhas últimas horas. Em Gogrial, eu tive que lidar com a morte já nas minhas primeiras horas. Lembro-me que, na minha primeira noite, ainda não tinha recebido o meu rádio e estava indo escovar os dentes para dormir quando a enfermeira me viu e me perguntou qual a frequência respiratória normal para um bebê – ela tinha ouvido uma conversa pelo rádio entre o clínico de plantão e o enfermeiro e ficou com a pulga atrás da orelha. Eu lhe disse que o número não estava normal e fomos até o meu primeiro chefe, que estava de plantão, para informá-lo de que seria bom ir à enfermaria. E lá fui eu com a enfermeira. Quando vi o bebê, tinha certeza de que era meningite, mas não podia ter certeza porque o laboratório não funcionava à noite. Optei por tratar o bebê. Enquanto estava prescrevendo o antibiótico e uma hidratação, eles me chamaram para ver uma menina de 19 anos que tinha sido internada naquela tarde com insuficiência cardíaca. A menina morreu na minha mão, antes que eu pudesse fazer algo; logo em seguida o bebê também partiu. Naquele momento soube que seria uma missão muito, muito difícil.

Cheguei no momento de pico da malária e da desnutrição, então, claro que vi muitas crianças chegando muito tarde e não havia mais nada a ser feito. Por outro lado, tentamos muito fazer o máximo por elas. Lembro-me de que eles não estavam acostumados a tentar a reanimação. Eles pensavam: se o paciente está morrendo, deixa morrer. E, nas primeiras vezes em que tentei, estava praticamente sozinha. Claro que grande parte das reanimações não funcionaram, mas, depois da primeira criança com malária grave sobreviver, eles ficaram empolgados; quando o paciente era grave eles já começavam a explicar para a família que talvez a reanimação fosse necessária, porque os pais não entendiam o que estávamos tentando fazer.

Lembro-me de uma criança desnutrida com sepsis, Nybol, que chegou supermal, melhorou e, quando nós introduzimos o Plumpy´Nut, ela teve distensão abdominal. Tivemos que colocar a sonda para eliminar tudo o que tinha no estômago, paramos toda a alimentação e demos antibiótico. O promotor de saúde explicou tudo para a mãe que, mesmo hesitante, confiou em nós. Ela começou a melhorar, voltou a comer, mas, depois, pegou pneumonia e aí não respondia mais aos antibióticos. Na noite em que ela morreu, a mãe disse que sabia que tínhamos tentado de tudo, mas estava cansada de tentar segurar sua filha e queria que a deixássemos partir. Cortou meu coração a sabedoria daquela mãe tão simples que nunca frequentou uma escola e nunca tinha estado num hospital antes.
Antes de abrirmos a enfermaria de desnutridos, muitas mães escapavam porque elas não entendiam por que seus filhos tinham que ficar vários dias internados e tomando leite e/ou comendo uma pasta (Plumpy´Nut) ou ainda a razão de alguns estarem com um tubo no nariz – a sonda para alimentar aqueles que estavam muito fracos. Por isso, quando abrimos nossa enfermaria, comemorei muito, porque era muito mais fácil para as mães entenderem que todas as crianças naquele espaço estavam lá porque tinham a desnutrição como principal problema de saúde.
Acho que nos seis meses em que estive lá, a minha pior noite foi a da festa de despedida da primeira enfermeira que trabalhou comigo, uma sueca ótima, e do meu primeiro chefe. O dia já tinha sido difícil – a enfermaria lotada, o PS recebendo pacientes o dia todo, eu havia perdido uma criança de dez anos para uma anemia severa, porque não encontramos doador compatível (diferentemente do Níger, não tínhamos banco de sangue) e, claro, tudo secundário à malária. Durante a noite, não parei. Fui chamada nas enfermarias, no PS, na maternidade. Naquela noite, perdi uma criança com malária, uma desnutrida e um recém-nascido com tétano. Não dá para esquecer o contraste. Eu, a enfermeira sueca, a obstetra e a promotora de saúde trabalhamos até às 3 da manhã sem parar e, após perdermos três pacientes, e tentar consolar a equipe e as famílias, voltamos para o nosso espaço comum para tentar respirar e nos recompormos. E, ainda por cima, vimos parte da nossa equipe festejando e dançando, mostrando-nos a enorme contradição da vida.
Claro que também tivemos casos bons para relembrar. Lembro-me de um menininho de dois anos, que chegou ao PS num final de tarde com febre e desidratado, quadro de pneumonia, mas em broncoespasmo severo – quando os pulmões se fecham e o ar não consegue sair. Meu novo chefe, que tinha chegado um dia antes, me ouviu pedir um leito com oxigênio pelo rádio e veio ver o que era. Colocamos o oxigênio, mas não conseguíamos o acesso venoso; ele estava superdesidratado. Passei uma intra-óssea, que é quando a gente coloca uma agulha direto na medula do osso da perna – e começamos a hidratá-lo. Ficamos com ele até umas 22 horas, eu e o meu chefe, e depois nos revezamos a noite toda para vê-lo. Ele ficou duas semanas internado, mas foi para casa superbem. Ver o sorriso dele no dia da alta não teve preço.

Outro caso que me marcou muito foi o de uma menininha de dois anos, completamente desnutrida e com anemia severa devido à desnutrição, já com sinais de insuficiência cardíaca pela anemia. Assim que constatamos a gravidade do caso, colocamos o oxigênio e testamos a mãe para a transfusão de sangue, só que ela não era compatível. Perguntamos pelos familiares, mas eles moravam a dois dias de caminhada de distância. Como estávamos em meio à temporada de chuvas, estava tudo alagado e nossa equipe não conseguiu chegar ao local.

Após 48 horas, ela estava cada vez pior. Fui ao laboratório para perguntar qual o tipo sanguíneo da pequena, disposta a doar meu sangue para ela, mas, infelizmente, éramos incompatíveis. O problema foi que nós, a serviço de MSF, somos expressamente proibidos de doar sangue para pacientes e meu chefe, ao saber das minhas intenções, chamou-me e disse que não concordava. Enfim, falei com a promotora de saúde e conversamos com toda a sua equipe explicando a necessidade de convencer um acompanhante a doar sangue para ela. Na cultura dinca, doar sangue é algo muito pessoal e, às vezes, nem os parentes mais próximos se predispõem. Finalmente, a tia de outra criança desnutrida se sensibilizou e aceitou ser testada. Fiquei tão feliz com a iniciativa que a abracei e a beijei, uma coisa não muito comum por lá, e abracei o promotor de saúde que a convenceu. Acompanhei todos os testes no laboratório rezando para dar tudo certo e deu. Elas eram compatíveis e a doadora não tinha nenhuma doença.

Começamos a transfusão, fui ver outro paciente e, menos de 30 minutos depois, o enfermeiro me chamou. Fui correndo e, quando cheguei, vi que ela estava tendo uma reação à transfusão. Fizemos de tudo, mas ela morreu. Eu, o enfermeiro e a doadora ficamos arrasados. Claro que meu chefe ouviu no rádio e veio ver o que estava acontecendo. Percebi em seu olhar que ele também sentia, mas, como chefe, sua fala foi: “Você não pode salvar todo mundo”. Queria pular no pescoço dele, porque sabia que estava certo.

Outro caso que sensibilizou a todos nós foi o de Abol, uma garota de dez anos que teve um tumor cerebral em 2010, foi operada, e teve uma infecção por fungo depois disso. Durante o tratamento, a mãe morreu, o pai desapareceu e, aparentemente, ela ficou sozinha no mundo. Nas minhas primeiras semanas, me chamaram para vê-la, porque ela se recusava a se alimentar e já estava com o inchaço típico da desnutrição por falta de proteína. Assim que falei com ela, percebi que estava deprimida, mas não tínhamos antidepressivos no projeto. Tentamos integrá-la com as crianças da enfermaria de pediatria, mas ela se recusava. Foi ficando cada vez mais restrita à sua cama. Uma noite eles me chamaram no rádio porque Abol não estava respirando. Quando cheguei lá constatei que já estava morta há algumas horas, dura e gelada. O mais chocante foi que ela tinha vômito em seu travesseiro; suponho que tenha tomado algo para se matar. Os enfermeiros negaram, dizendo que isso não era possível, mas sei que ela se matou e eu, como médica, e MSF, como organização, falhamos com essa garota. Fiquei me sentindo mal por semanas.

Por outro lado, ainda falando dos meus pacientes pediátricos, tivemos muitos ganhos: vimos muitos desnutridos severos saírem do hospital com bochechas, diagnosticamos muitas crianças com tuberculose e conseguimos estabelecer um ótimo relacionamento com o Ministério da Saúde na cidade vizinha, Kuajouk, enviando nossos pacientes com tuberculose para eles começarem o tratamento por lá. Lembro-me de duas garotinhas, ambas chamadas Amir, que chegaram supermal. Depois de dias com oxigênio, começamos a investigar melhor e diagnosticamos a tuberculose. Iniciamos o tratamento e, quando fui embora, elas já estavam no terceiro mês de tratamento, gordinhas, e as mães supercontentes. Vê-las me dava ânimo para continuar.

Quanto aos adultos, a situação era um pouco mais complicada. Vi inúmeros pacientes morrerem, a maioria de doenças crônicas, como insuficiência hepática ou cardíaca, que já são difíceis de tratar mesmo no Brasil. Para esses pacientes tentávamos dar o tratamento para melhorar os sintomas do desconforto e conversávamos com eles e a família para explicar o prognóstico. O mais triste foram os pacientes de tuberculose que vi morrer antes mesmo de poder começar o tratamento. Isso é terrível, porque a tuberculose é completamente tratável, mas eles chegavam muito tarde ao hospital.

Outro caso que não esquecerei tão cedo foi de uma paciente de 21 anos, que chegou no PS numa sexta-feira à tarde, com dois gêmeos de um ano e meio e sem ninguém para ajudá-la. Ela andou por dias com as crianças e mal se aguentava em pé. Pela história e seu quadro clínico, a principal suspeita era tuberculose. Como ela estava muito mal, tentamos colher o máximo possível de informações para localizar sua família, mas tivemos de esperar até segunda-feira de manhã para enviar o carro com promotores de saúde. Ela morreu na madrugada da segunda-feira e os gêmeos ficaram sozinhos, sentadinhos no chão, olhando para o corpo da mãe sem entender o que estava acontecendo, sem sequer chorar. Era de cortar o coração. Eu estava decidida a tentar adotá-los, caso não encontrássemos a família. Felizmente, no fim da tarde, nosso carro voltou com o pai dos gêmeos.

Um fato interessante é que, ao contrário do Níger, eu não lembro o nome da maioria dos pacientes que atendi. Acho que foi uma forma que meu subconsciente encontrou para eu não sofrer tanto com as perdas, senão não seria capaz de continuar a trabalhar com MSF, porque, afinal de contas, diante de todas as dificuldades que enfrentamos, não é para sofrer com as perdas, mas, sim, festejar todos os pacientes que pudemos ajudar de alguma forma. E são esses pacientes e colegas de trabalho, como os que eu tive em Gogrial, que tornam a vida menos difícil longe da família e dos amigos.

Beijos,
Rachel

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