Construção e desconstrução cotidianas

O enfermeiro Richard Ferreira fala sobre sua primeira experiência com MSF, no Sudão do Sul

Construção e desconstrução cotidianas

Estou em Lankien, uma região do Sudão do Sul, país atualmente vivendo sob conflitos civis e com histórias de muita violência contra sua própria população. Vim para ficar seis meses e já estou há quase quatro. Sou enfermeiro, gerente das atividades de enfermagem (Nursing Activity Manager) do hospital do projeto. Temos atualmente 80 leitos para atender uma população de aproximadamente 70 mil pessoas, que migraram para essa região, que buscam segurança.

Lankien é uma região pantanosa, que na época das chuvas tem grandes problemas com as possibilidades de transportes, pois apenas se chega aqui de avião ou helicóptero. MSF dispõe atualmente de dois voos semanais; porém, se há chuva, o terreno onde está a pista de pouso fica impossibilitado para pousos seguros, apenas funciona para helicópteros e não dispomos de um aqui. Pois se não temos nenhuma possibilidade de voos e pousos, nossos suprimentos ficam falhos, e com isso temos semanas sem alimentos frescos, ou mesmo sem alimentos, tendo com isso que viver com consciência do consumo e do desperdício. Não somente com alimentos, mas também com o que nossos médicos prescrevem.

Diariamente eu circulo por todo o hospital. Sempre gosto de lembrar a quem me pergunta sobre o hospital que não se deve pensar em uma construção como conhecemos em nosso país, pois aqui se seguem as possibilidades e características locais. Respeitando sempre os hábitos e a cultura. E integrando esse paciente aos cuidados específicos e que o MSF tem como protocolos.

Nossos principais tratamentos são contra malária, calazar, pneumonia, anemias decorrentes do calazar, e ferimentos por arma de fogo, pois mesmo tendo dito que essas pessoas migraram para cá em busca de tranquilidade, outros também migram trazendo a violência. Principalmente agora nos meses de novembro e dezembro, pois estamos na temporada da seca, que facilita as locomoções e caminhadas. Isso traz mais violências a essas famílias e pessoas ao redor do projeto.

Estou no meu primeiro projeto com MSF, minha primeira vez na África. Todo esse contexto inteiramente novo pra mim começou no Brasil, com todo o processo de recrutamento, pois eu não tinha o inglês fluente e busquei arduamente melhorá-lo. Estudei um pouco de francês, falo espanhol e português. Essa dificuldade do idioma foi e continua sendo meu desafio aqui. Encontrei um clima quente, úmido e com tempestades que assustavam no começo, pois vivo em um tukul, construção típica do país, feita de barro e pedra, e teto de palha. Com muita chuva, as paredes começam a derreter e são refeitas pelas mulheres. Esse serviço é exclusivo das mulheres, entre tantos outros serviços bem pesados que são exclusivamente feitos por elas.  

Incrível esse impacto inicial. Porém, quando comecei a atuar nessas rondas pelo hospital, cumprindo minhas funções diárias, comecei a me deparar com mais e mais situações culturais e profissionais, que digo que são desconstruções do que eu havia por quase 20 anos construído. O termo desconstrução que uso aqui, não se remete a ideia de que são negativas essas avaliações, isso não cabe aqui. Ao contrário, está sendo possível introduzir todo o meu conhecimento desses quase 20 anos trabalhados no Brasil, de forma bem gradativa e no tempo devido. Nem rápido e nem tão vagarosamente.

Reconheço as minhas dificuldades com a comunicação, porém não foi impedimento para que eu realizasse e ainda estou realizando um trabalho em que adaptei meus conhecimentos as necessidades locais, alterando espaços físicos, organização e higiene, conscientização de hábitos simples – porém importantes – como as lavagens das mãos. Também iniciamos treinamentos baseados na avaliação da necessidade individual de cada profissional, trabalho árduo, e que exige muito minha energia.

Os profissionais locais, que são trabalhadores residentes aqui e de nacionalidade sul sudanesa, têm qualificações de acordo com as legislações do país, e são semelhantes aos nossos auxiliares de enfermagem, mas com mais autonomia. A comunicação foi difícil no começo, até meus ouvidos se acostumarem com os sotaques. Imagine que diariamente lido com no mínimo 60 pessoas falando outro idioma e a grande maioria tem o inglês como primeira língua. Isso está sendo meu maior desafio.
 

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