Enquanto você se esforça para ser…um sujeito normal…

Enquanto você se esforça para ser...um sujeito normal...

Estou em MSF desde 2015. São cinco anos fazendo as coisas que mais amo: conversar olho no olho, ouvir, me colocar no lugar do outro, me conectar com as pessoas, provocar empatia, construir uma ideia juntos, sensibilizar as pessoas, e por fim, provocar mudanças de atitude. E ainda sou um aprendiz ao fazer tudo isso. Sempre trabalhei no Face to Face (F2F), setor da organização responsável por captar doadores nas ruas, lugar a que devo tudo o que sou hoje. Aliás, as revoluções acontecem nas ruas, não é mesmo?

Desde 2019, eu já sonhava em trabalhar como promotor de saúde em um projeto de MSF, mas ainda achava algo muito distante. Então, em março de 2020, fui convidado para trabalhar nessa exata função no projeto de emergência de MSF em São Paulo, na linha de frente do combate à pandemia de COVID-19. Muita gente ainda não faz ideia do que faz um promotor de saúde. Esse profissional é responsável por conhecer profundamente uma determinada comunidade, e criar estratégias para suscitar mudanças de comportamento nas pessoas, de modo que essa comunidade se empodere sobre sua própria saúde. E para que os objetivos das ações médicas de MSF sejam atingidos, por meio de diversas ferramentas: informação, comunicação, educação em saúde, sensibilização, engajamento comunitário, combate à desinformação, e principalmente, escuta ativa. E essa, ainda não é uma das melhores definições desse profissional.

O projeto em São Paulo teve como foco trazer equidade no acesso a cuidados de saúde relacionados à COVID-19 para as populações vulneráveis. Por isso, grande parte do projeto foi voltado para as pessoas em situação de rua em São Paulo, um público de 24 mil pessoas, e que só vem aumentando com o agravamento do desemprego gerado pela pandemia. Vimos muitas pessoas recém-chegadas na rua.

Iniciamos o trabalho junto às diversas ações sociais de distribuição de alimentos na cidade – aproveitando as filas – para realizar triagens de casos suspeitos e conversar com as pessoas sobre medidas de prevenção contra a COVID-19 que eram possíveis dentro de suas realidades. Não cabia o “fique em casa” para essas pessoas. Tínhamos de nos esforçar e construir uma ideia juntos de como elas poderiam se proteger da COVID-19.

Nunca vou esquecer do meu primeiro dia de trabalho como promotor de saúde. Na noite anterior, eu estava muito ansioso. Lembro de acordar de madrugada e pegar o celular diversas vezes para me certificar que o despertador estava ativado e o horário estava correto. No dia seguinte, já no local de atuação, enquanto eu colocava meus Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), pensava preocupado: será que eles vão receber a gente mal? Como eles vão tratar a gente?

Quando arrumamos a tenda de triagem, colocamos os EPIs e iniciamos as atividades. Uma pessoa em situação de rua havia colocado para tocar em um radinho de pilha velho a música “Maluco Beleza”, do Raul Seixas. Logo em seguida, algumas pessoas em situação de rua começaram a cantar e alguns de nós, promotores de saúde, completávamos os trechos da letra cantando também. E seguimos cantando juntos toda música enquanto realizávamos a triagem e conversávamos com eles sobre a prevenção ao novo coronavírus.

Foi uma conexão imediata, diferente de tudo que eu esperava. Eles nos trataram muito bem e disseram estar muito felizes que nós estávamos ali. Inclusive conheci pessoas que haviam sido doadores de MSF antes de estarem naquela situação. Aliás, que preconceito é esse de achar que eles seriam hostis? Por que essa divisão “nós” e “eles”? Enquanto escutava suas histórias, com a letra da música ao fundo, refletia sobre como aquelas pessoas foram parar em situação de rua. Me lembrei que havia lido que muitas vezes os motivos são brigas de família, perda de familiares, perda da autoestima, falta de emprego, violência, abuso de drogas e muitos outros motivos, que como seres humanos, estamos sujeitos a enfrentar uma hora ou outra na vida. Essas pessoas não se enquadraram como “sujeito normal” e foram excluídas pelo sistema.  

Muitas pessoas, por serem mais privilegiadas, têm menos chances de passar por isso. Refleti que poderia ser eu ali, naquela situação: “Nossa! Como sou privilegiado!”. Então, passei a me sentir muito feliz em poder ajudar de alguma forma essas pessoas, feliz de estar ali fazendo o que eu estava fazendo. Não queria que aquele primeiro dia de trabalho acabasse. Eu estava aproveitando cada minuto. Aquele dia me despertou para algo. Dei o meu máximo no projeto e acabei me tornando supervisor de promoção de saúde.

O projeto se expandiu, trabalhamos na Cracolândia, trabalhamos dentro dos maiores abrigos para a população em situação de rua da cidade, cuidamos de toda parte médica de dois Centros de Isolamento voltados somente para essa população e fizemos diversas ações de busca ativa de casos suspeitos e promoção de saúde em diferentes comunidades e ocupações da Zona Sul e da Zona Leste. Também ajudamos a reduzir a mortalidade na UTI de um hospital localizado em uma das áreas mais atingidas pela COVID-19 na cidade, entre muitas outras ações. Foi um projeto lindo, eu queria realmente ter morado nesse projeto.

Sigo trabalhando com o mesmo sentimento do meu primeiro dia, sempre aprendendo, me permitindo conhecer o outro, quebrando antigos preconceitos e me esforçando para não ser mais um “sujeito normal” e invisibilizar essas pessoas quando ando pelas ruas.  Sigo me esforçando para nunca mais “fazer tudo igual”.

 

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